domingo, 10 de abril de 2011

Quero ver como suporta me ver tão feliz.

Baseado na música de Chico Buarque : Olhos nos Olhos

As coisas não estavam indo muito bem entre eu e Miguel, isso qualquer pessoa que fosse próxima de nós dois conseguia perceber.

Nos conhecemos no colégio, quando tínhamos mais ou menos dezesseis anos. Eu era estranha, gostava de ler livros antigos, ia pra escola de bicicleta, tinha aparelho, óculos, cabelo preso em rabo de cavalo pra trás e usava roupas completamente desatualizadas. Miguel era bom demais pra mim, estava no time de futebol da escola, era lindo e popular, nem notava a minha existência. Nunca liguei muito pra ele, pra falar a verdade, nunca liguei pra ninguém daquela escola ridícula, todos que estudavam lá eram filhinhos de papai estúpidos que nunca vão saber o que é ganhar a vida com o seu próprio esforço.

O grande acontecimento foi que eu me mudei para os Estados Unidos e fiquei morando lá por volta de um ano e meio. Quando voltei a concepção do pessoal da escola em relação a mim acabou mudando, afinal, o patinho feio tinha finalmente se transformado em cisne e estava pronto pra arrasar. Os óculos viraram lentes, aparelho foi substituído por dentes totalmente alinhados e brancos, o rabo de cavalo eu resolvi aposentar e em relação às roupas... Tive algumas aulas de moda com o pessoal dos USA.

Primeira questão, antes de sair do Brasil eu não tinha amigos no colégio. Quando voltei, todos queriam saber quem eu era e virar meus amigos. Segunda questão, quando algumas garotas começaram a ver que os caras populares estavam se aproximando de mim colavam no meu braço e me chamavam de amiga. E a última e mais importante de todas, Miguel.

Não gosto de falsidade, nunca gostei, quem não gostava de mim antes não teria como começar a gostar depois que eu voltei, isso só aconteceu porque eles sabiam que a minha popularidade naquele lixo estava aumentando e por causa disso eles iam ganhar algo em troca se começassem a andar comigo. Mandei todo mundo se fuder e continuei fazendo o que fazia de melhor, ficando sozinha.

Chega uma hora na vida da pessoa que ela sente falta de alguém pra amar, ficar junto, contar os problemas, rir, enfim, de um namorado, eu estava começando a me sentir assim. A escola era monótona, os caras que me davam ideia não gostavam de mim pelo que eu era e sim pelo que eu me tornei, aquilo me incomodava demais. Miguel era o único cara, que mesmo depois da minha mudança, nunca ligou pra mim, aquilo me assustava, mas de um jeito bom, como se ele não gostasse de mim e pronto, independente do que eu vestisse ou a maquiagem que eu usasse. Me encantei com o cara popular de cachinhos dourados do segundo ano.

Hora do almoço, comida ruim, sinônimo de bois e aves mortos. Eu era vegetariana, aquilo nunca deu certo. Sentei numa mesa isolada com o meu prato de saladas e omelete de legumes. Duas mesas depois da minha sentavam os populares, no meio deles Miguel. Chuck, um troglodita em forma de gente vivia dando em cima de mim depois que voltei pra escola, nesse dia mais uma vez tentou me chamar pra sentar com eles, e dessa última vez eu aceitei, não por ele (eca) só pra observar o Miguel mais de perto.

Todas aquelas vozes em volta perguntando como tinha sido nos Estados Unidos, se os caras de lá eram gatos, se eu trouxe muita coisa de lá, era como se todas aquelas pessoas falando no meu ouvido estivessem em silêncio, o dourado dos cachinhos daquele garoto que não me dava papo e não tinha uma posta de carne no prato estava me contagiando e eu não hesitei em perguntar :

­­ – Por que você não gosta de mim?
Heim ? – Se fez de tonto, faz isso muito bem até hoje.
Desisti de perguntar e ele também se calou. Quando saímos da escola eu peguei minha bicicleta, arrumei minha bolsa e alguma coisa apareceu na frente impedindo a passagem.
– Não tenho nada contra você
– Então por quê você nunca fala comigo ? – Eu estava indignada
– Sei lá, acho que não queria que você pensasse que eu estava me aproximando de você agora só porque está a maior gata. – Me deixou encabulada – Vamos tomar um sorvete.

O sorvete. Essa foi a deixa pra tudo. Depois do sorvete nos conhecemos melhor, ficamos, namoramos por cinco anos, nos casamos e no fim de tudo ele me deu um pé na bunda. Foi o pé na bunda mais imundo e injusto de toda a história dos pés na bunda, e tudo isso foi culpa de quem? Do maldito sorvete. Se eu não tomasse o maldito sorvete com ele a seis anos atrás eu seria uma mulher feliz.
Bom, foi exatamente assim:
Nós começamos a brigar todos os dias. Nunca fomos um modelo de casal, mas de uns meses pra cá nossa vida virou um inferno. Eu sempre tentei agradar ele, a vida inteira. Todos os dias ele chegava e encontrava o jantar pronto, quente, em cima da mesa com todas as regalias que um homem precisa. Quantas às vezes que deixei de sair com as minhas amigas únicamente e simplesmente porque ele não gostava, e o amor ? Ele arrastou pra debaixo do tapete e jogou fora junto com o tapete, com os nossos planos, com todo o nosso projeto de vida.

Sinceramente, pensei que ia enlouquecer. Imagina uma coisa dessas, ele simplesmente pegou a minha vida e jogou no lixo com sete palavras “ Amanhã eu venho pra buscar minhas coisas “.
Quando ele chegou em casa, como era de costume as malas dele estavam prontas, roupas passadas e limpas, como se ele fosse viajar pra mais uma convenção, só com uma diferença dessa vez ele não voltaria

– Espero que você seja feliz
Filho da puta. Atirou a minha vida na lata do lixo e me pede pra ser feliz.
Mais uma vez as coisas seriam do jeito que ele quis...

O bar parecia o melhor lugar pra mim naquela noite, o destino era certo, o que eu iria fazer quando chegasse lá é que era o problema. Me arrumei como se estivesse me arrumando pra sair com o Miguel para algum restaurante, só que sem ele.
– Um drink, por favor
Eu estava me sentindo uma corna. Só faltava a música do Reginaldo Rossi de fundo. Olhava em volta... Até que o bar era bonitinho.
– Uma cerveja, por favor
Descrição do cara da cerveja : Moreno, alto, bonito e sensual, quem dera ele fosse a solução dos meus problemas.

Depois do terceiro drink e ele lá pela terceira cerveja também as palavras foram trocadas sem medo e com aquele brilho que só depois de umas e outras a gente consegue ter.
– Tomou um toco? – Perguntou delicado igual a uma jamanta
– Não, meu marido me deixou depois de eu ter deixado tudo por ele
Pelo visto, ou ele sabia o que era isso ou estava fingindo muito bem porque se calou e resolveu mudar de assunto.
A noite corria e por um momento eu esqueci quem era Miguel e toda a canalhice que ele tinha feito comigo, falar de Frank Sinatra e de como o bom e velho rock está cada vez mais distante de nossa realidade nos parecia bem mais interessante, até o garçom chegar e desejar feliz dia dos namorados pra nós dois. Chorei até desidratar e ele ficou do meu lado me ouvindo falar de como eu não sabia o que fazer, de como eu queria ficar feliz só não sabia como fazer isso.

A sugestão do galã de cinema não poderia ter sido melhor.
Primeiro me disse uma coisa que me abriu os olhos
– Você tem vinte e quatro anos de idade, não é uma velha, tem muita coisa pra viver ainda. Acho que esse é o momento de você resgatar tudo que esse cara arrancou de você, resgatar sua vida, sua juventude. Pelo que você me disse você agia que nem a minha mãe. Cozinhava, passava, lavava, vivia pra ele, não acha que agora é sua vez de viver pra você?
Depois me levou pra balada.

Foi realmente a sensação de estar resgatando a minha adolescência. Eu dancei a noite toda, bebi, vi as luzes da boate em volta de mim e por mais que a música fosse super agitada, eu sentia como se fosse um mantra relaxando a minha mente.

“But it's a good excuse to put our love to use
Baby I know what to do, baby I will love you
I'll love you, I'll love you
.”

Sabe aquela música que era a única coisa que você não precisava ouvir? Foi justamente a que tocou. As lágrimas escorriam pelo meu rosto e ele as secava, me abraçava forte e me balançava para um lado e para o outro tentando me fazendo curtir até o meu sofrimento. Eu nem conhecia aquele cara, por que ele estava secando as minhas lágrimas? Ele tentou o beijo, eu não cedi, ele tentou de novo. O cheiro daquele perfume diferente e os braços que me envolviam não me deixaram escapar. Ele me beijou de um jeito que em todos esses seis anos Miguel nunca tinha feito. Naquele gesto não tinha amor, nem desejo, tinha algo mais. Talvez carinho, compreensão, talvez ele só tenha me achado maluca e por isso resolveu me beijar mas foi incrivelmente marcante.
Ele me deixou em casa, perguntou se eu tinha certeza se não queria que ele subisse, eu disse que não, mas que de qualquer forma tinha o telefone dele se precisasse.
Subi para o meu quarto, tomei um banho quente, saí com o vapor me rodeando, a casa estava vazia, eu não estava acostumada com aquilo. Bom, bem ou mal eu ainda tinha o telefone do cara super fofo do bar.

Em alguns minutos lá estava ele, embaixo da minha janela com os braços cruzados e os músculos saltando me fazendo perder o controle. Ele subiu, disse que sabia do que eu precisava, fez brigadeiro pra mim, vimos filme abraçados e comendo aquela gororoba , ele me levou pro quarto e me mostrou que o Miguel não era de nada.

A manhã da minha casa nunca foi tão bonita. Eu sabia que não teria de novo, ele foi uma noite incrível que nunca mais se repetiria, não com ele, quem sabe com outros tão mais apaixonados em um dia que o Miguel jamais foi em todos esses anos, que vão me dar mais valor em um dia do que o cafajeste que me largou jamais ousou em fazer.

Durante todos os meus dias sem o Miguel eu busquei fazer exatamente o que ele me pediu quando saiu da nossa casa : ser feliz.
Tantas coisas aconteceram... Voltei a ser uma pessoa amável e sociável, senti como se tivesse voltado no tempo em que conheci o Miguel e tivesse escolhido não tomar o sorvete com ele, retomei a minha vida, os meus projetos, meus sonhos... Nada disso ele conseguiu levar naquela mala que ele carregou só Deus sabe pra onde.

O computador me ocupava a mente com o novo livro que eu estava escrevendo, as pesquisas não paravam e as ideias fluíam na minha cabeça como nunca fluíram. O café, meu mais novo melhor amigo estava me tirando noites de sono que eu não me arrependo de ter perdido. E... fim. A campainha tocou.

Miguel.
– Oi, vim saber como você está... Eu fiz a maior burrada da minha vida em ter te largado, descobri que não poderia ter cometido erro maior.
– É, você errou mesmo, obrigada, me fez acertar. Pela primeira vez em seis anos eu posso te agradecer por ter me feito feliz, foi certamente a melhor escolha que você já fez na sua vida.

Caroline Linhares.

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